segunda-feira, 12 de maio de 2014

A última vez que morremos...






A última vez que morremos,
tivemos a glória de contemplar
cada segundo da surreal decomposição
dos nossos trajes de noivos.
O pequeno crânio de cristal
que sorria no canto direito da escuridão
havia reiniciado seu ininteligível
discurso pseudofilosófico
com aquela voz típica de esquilo chipmunk
impossível de ser levada a sério.

Mas nada era tão sério assim.

Foi nesse segundo que lembrei,
por uma breve eternidade,
de uma cena já passada há milênios.
Nós dois nos equilibrando de braços abertos
sobre as folhas flutuantes
no rio que seguia mansamente
até o horizonte de todas as possibilidades
da imortalidade.
Nem os inocentes batráquios ao redor
conseguiam nos capturar,
talvez por sermos ainda menores, e mais ágeis,
que as línguas deles.

Bastou, entretanto, apenas algumas piscadas de olho
para mergulharmos novamente
na faixa de realidade que nos foi imposta.
Cataratas desabaram sobre nossos dorsos
enquanto afundávamos
no abismo resplandecente
emparedado pelas risadas e choros musicais
das gerações de atores anônimos
que nos educaram para a morte.
Os mundos desfilavam diante de nós
como contas de pérolas ou gotas de luz
roubadas das memórias dos prismas enciclopédicos
erguidos sobre o caos
das civilizações arruinadas.
Éramos nós que desabávamos e nos reerguíamos
ao ritmo dos ciclos dos séculos.
Nossos lindos e disformes corpos
ostentavam as marcas notórias
de cada época e ideologia.
As coletividades costumando nos surrar
e expulsar continuamente de suas pátrias.

Mas os espaços foram marcados.
Sempre um sinal, um vestígio
por onde passamos.
Mesmo que nunca tivéssemos chegado a um acordo
sobre o que éramos e de onde viemos.
O que importava... e ainda importa...
era (e é) para onde conduzimos
a barca festiva dos defuntos
mais vívidos e coloridos
que as terrenas lendas
já tão opacas e decompostas
pelo auxílio das traças
da estagnação de cada cultura.

Ninguém jamais suspeitou
das nossas aventuras
durante os nossos sonos.

Somos eternamente
os pontos de luz
contra o fundo escuro do tempo.








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