quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O trato





Eu vejo com seus olhos,
cheiro com seus lábios secos,
choro o suplício carnal do seu corpo mirrado,
assim, atado à cama branca e estreita.
Devo, porém, cumprir o trato...
 
Nenhuma mancha fere a parede caiada,
nada mais zomba
das cicatrizes mal dissimuladas,
ninguém mais ri da sua piada velha.
Por favor, não pense tanto.
Você não precisa fazer nada, e nem o poderia;
confie em mim.
Apenas sinta-me correr em suas veias,
dançar sinuoso e azul nos espaços vazios
da sua memória torturada.
Sinta-me pulsar em seu peito.
A angústia está além de seu conceito;
certamente não é um conceito
que lhe faz gemer.
Conceitos, meu amigo,
não têm sangue, nem carne, nem podem
se arrepender inutilmente.
Meu delicioso amigo,
é triste, mas inevitável.
Faz parte da morte.
Juntos nos acabamos:
Shakespeare adoraria essa.
Você me chamou, agora me rejeita;
mas não vou me remoer por isso.
Minha fidelidade transcende sua incompreensão.
 
Você me recebe com esses anticorpos
mal treinados, pobrezinhos...
Só eu posso controlar o meu ciclo
e minhas mutações.
Já para você isso é pecado;
eu conheço o seu deus.
Conheço muito bem você também,
mais do que você mesmo,
porque lhe conheço por dentro...
 
No fundo eu admiro você.
Temos muito em comum:
desconheço minha razão de ser,
muito menos meu dever.
Apenas o cumpro.
Aquele carpinteiro do Pequod,
lembra? Moby Dick.
Fazendo caixões,
fazendo próteses de pernas.
O cara nem sabia por que ele fazia as coisas.
Apenas ia em frente.
 
É assim que deslizamos
rumo ao nosso destino.
Ao grande inevitável.
Simplesmente afundamos,
e sem mais explicações.
 
Como fazem os deuses
e todas as bolsas de sangue
que julgam pensar e sentir.









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