domingo, 11 de março de 2018

Condolências aos restos mortais de um Ideal Absoluto particularizado






NEIL – Bem,
era isso que você queria.
Em poucas horas será dia,
não sabemos o que fazer com os restos
e os restos não foram muito bem separados.
CHRIS – O fato de não podermos jamais
trazer de volta o absoluto que perdemos
não precisa ser necessariamente motivo de lamento.
Sinta o gostinho.
NEIL – Sabe, às vezes as suas palavras
conseguem me erguer do chão e eu flutuo.
Gostaria que pudesse ser sempre assim.
O problema é que agora se trata do...

Qualquer um diria que tudo continua igual,
porque não inventaram o raio-X da alma
e eu continuo visível
mas não compreensível,
se é que tu mesmo me compreendes...
Ora, vejam: estou falando com as paredes.
Elas ainda estão de pé,
porque não podem se apaixonar.

Vergo a haste do meu passado.
Meu opróbrio é suave
quando não sou Pensamento
e Desejo.
Mas se sou Coceira,
logo também sou Coração,
e sinto muito por não ter
retido tua vileza saborosa
intacta em minha desrazão.

Bustos de Lênin, imagens de Maria
– apenas crer não me alivia.
Bono Vox, Che Guevara, Luiz Inácio,
– procura-se desesperadamente por um Messias.
Como posso eu contar a eles
que acabo de matá-lo?
Como posso contar ao mundo
que o fim está próximo?
Acabamos de matá-lo
com o requinte da língua,
na inocência de um beijo,
naquela delicada mordida sedenta de sangue.
Num trágico fim de noite,
estático e já emoldurado em minha mente,
pisamos na terra, entre espinhos e cardos,
decaídos, exilados, fugitivos, criminosos...

Meus olhos não conseguem acompanhar o videoclipe,
meu pesar é um arcaísmo obsoleto
e catatônico o ritmo do meu pranto...
Ninguém jamais lerá os versos
analógicos ou de última geração digital
de rancor mal dissimulado
sobre os pés da tua imagem derramados.
Minhas vidas se derramam
em gotas masculinas sobre o algodão,
entre farelos carbonizados de alcatrão.

Horas a fio.
(...?)

Há um vazio no céu:
nosso amor está morto.
Comecei a morrer desde que nasci para o teu amor...,
antes um aborto da tecnologia,
ZERO em Teologia da Libertação.
Fui escravo do teu vício,
capacho do teu capricho,
objeto de ordinário valor
a seguir-te em transe magnético
por ruas, esquinas, becos,
corredores, antessalas, espeluncas,
antros, pocilgas,
templos...

Não posso evitar a lembrança,
não há o que se possa fazer...
Apenas saio, calo, caio.
As gotas que caem de meus olhos
são o substrato de uma alma andarilha.
Pois não consigo mais conter-te em minhas pálpebras
trêmulas, cinzentas
como o céu que se derrama
fugitivo, exilado, decaído, criminoso,
entre espinhos e cardos...

Já se passaram três dias,
três semanas, três marias,
três glaciações...
e não está sequer cicatrizado
o músculo pulsante que feriste com tua língua
áspera, mordaz e ferina.

Desde que adentrei tua ferida,
fétida porém viva,
de enxertos alienígenas desconcertante,
atrofiadamente imprevisível,
reducionista e ambivalente,
pensei eu no que criar
de desafiador, no que gerar
sem a mácula original
que olvidei em mim recém ter passado a estar,
a partir do espasmo de meu órgão.

A Liberdade me castra
a identidade mal púbero-emancipada;
a ambivalente assim chamada Liberdade
me corta as pernas, me dá corda
e então me arrasto:
em Liberdade, devorado
– Prometeu acorrentado...

MAS se já estou cumprindo a pena,
eterna, irremissível,
então por que ainda me arrependo?
Por que de ti dependo?
Seria algo na Eternidade que me escapa,
humilha e exalta?
Não consigo ir mais longe,
em tua falta redundo.
Se paro para pensar,
logo me açoitam, cospem e forçam a continuar
a girar a velha roda...
(Rolar a velha pedra...)

Se o meu mundo cai por terra,
meu futuro será então enterrado;
e exumada será a velha chaga
que mantém o meu desejo
tão ilusoriamente morto como eu.
Se o meu mundo cai por terra,
amanhã cairão impérios,
cairá o resto
das ilusões de minha espécie em extinção.

Temo encontrar em meu pranto inútil
o prelúdio de minha redenção,
o repúdio da voluntária escravidão.
Extinção.
Fuga da fuga da fuga da fuga
da fuga de amar menos e melhor.
Por uma eternidade,
como, bebo e durmo eternamente.
Por uma eternidade,
como, bebo, escovo os dentes
e choro eternamente
a redenção
do fim do fim do fim do fim
da nova roda desafiadora,
alienígena, desconcertante e redentora.

Nosso amor morreu,
mas ainda estou vivo,
vagando entre dois mundos.
Continuo na carne
e sempre continuarei à tua sombra,
engolindo em seco teorias
continuamente ignoradas pelos amantes.
Estarei sempre a obsidiar-te,
vagabundo, errante,
entre dois reinos equidistantes.

Amanhã, tudo mais acaba
– e olhamos TV.

...FIM.


                                      Terça-feira, 13 de outubro de 1998








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