sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Pode um escravo filosofar? (Parte 1)


“Uma liberdade tomada apenas no contexto do pensamento implica uma meia-escravidão, quando muito, mas nunca uma Libertação.”




Pode um escravo filosofar? – se faço essa pergunta, é porque intuo que haja algo de escravo em boa parte da humanidade, e que isso inclui a mim mesmo. É algo difícil de aceitar, mas necessário de encarar, uma vez que definir claramente a realidade é o primeiro passo para sua superação.

Defino filosofar como sendo o processo iniciado por uma reflexão de caráter crítico, que será seguida por uma atitude correspondente; processo de aspirações universalizantes (analisando o amplo quadro de um problema sem perder de vista os detalhes) e que se realiza em liberdade – de pensamento, como ponto de partida. O que necessariamente exclui preconceitos e “estreiteza” mental. Uma mentalidade ao mesmo tempo aberta, atenta, absorvedora, mas com capacidade de sintetizar os dados coletados num todo teórico coerente, estruturado, articulado. Seja sistema ou visão de mundo, o que importa é que o objetivo desse imenso corpo de saber (e de duvidar, também, para quem preferir definições negativas das coisas) seja o de levar a uma ação - a ÉTICA é sempre a culminância da filosofia, seu produto final. Todo o sistema teórico é apenas para embasar e justificar a atitude.

Liberdade é a palavra-chave. Já vimos que não é possível filosofar sem liberdade de pensamento. Como obter uma liberdade objetiva, fora da mente, sem que a mente esteja primeiramente livre, ela mesma?

Já que falamos de escravidão, observemos suas duas acepções: uma física e outra mental. É distinção somente prática, para nosso entendimento, já que toda forma de tolhimento, restrição, opressão e constrangimento atingem simultaneamente o corpo e a mente, trabalhando ambos, mesmo quando se inicia com mais ênfase sobre um deles em particular (como veremos mais tarde). Corpos constrangidos = mentes constrangidas.

Muitos que se julgam livres em seus pensamentos (há quem considere o pensamento a única instância possível de liberdade) não estão devidamente cônscios da magnitude da lavagem cerebral a que foram submetidos: consideram-se independentes no pensamento, mas ignoram que suas ideias “independentes” podem bem ser meras REAÇÕES previstas e pré-programadas pelos seus opressores/escravizadores.

Ou seja, muitas das ditas “idéias libertárias” dos ditos “desfavorecidos” são indiretamente produzidas pelos próprios “favorecidos” lavadores de cérebros.

Exemplos típicos: estratégias de guerra (os inimigos deixam pistas falsas um para o outro, e muitos deles até se entusiasmam com a direção tomada, julgando isso um primor de suas próprias inteligências estratégicas, sem sequer desconfiar que estão sendo manipulados) e jogo de xadrez (onde não apenas temos que analisar bem a conjuntura das peças de ambos os lados, mas também imaginar o que se passa na cabeça do adversário, e ainda traçar uma estratégia para induzi-lo ao erro, tudo isso num curto espaço de tempo), para ficar só com alguns.

Imagine agora o que não está sendo feito para o condicionamento público, para orientar-nos a uma atitude, de modo a ainda pensarmos que as escolhas são nossas; nós, consumidores, trabalhadores, produtores, frequentadores, apreciadores e depreciadores...

Tenhamos agora uma apreensão mais ampla do drama da liberdade, situando-nos numa postura crítica cônscia da atualidade.

Por que, pois, defino a atual restrição e condicionamento social como escravidão? O que nos parece, afinal, uma escravidão?

Não quero aqui me valer do termo como metáfora. Quando digo escravidão, coloco-a, sobretudo, nos contextos de TRABALHO e condicionamento físico, seguindo o senso comum. Toda a tradicional formação do pensamento escravo advém destas condições, o inverso de uma somatização. Isso porque uma liberdade tomada apenas no contexto do pensamento implica uma meia-escravidão, quando muito, mas nunca uma Libertação.

Em nosso país, a única escravidão por agora abolida é aquela que antes vitimava exclusivamente as populações afrodescendentes e indígenas. A atual, todavia, é pior, pois é mais massificada e institucionalizada, e inclui a todos, sem distinção de raça ou classe, e caracterizada por uma alienação artificialista-despersonalizante-fetichista.

Digo que não há acepção de classe porque não me refiro apenas ao trabalho no contexto proletário, característico da Revolução Industrial e já há muito criticado pelos movimentos sindicais e socialistas. As formas atuais de escravidão vão mais longe, se aproveitando de qualquer circunstância que propicie a venda e negociação do indivíduo, transformado num ser híbrido “multiuso”: produto-produtor-utensílio-consumidor.

Se essa “multifunção” do ser humano é algo natural e inevitável, não o poderemos averiguar por enquanto. O que quero tratar é do abuso da função “produto útil” da pessoa, que se vê obrigada a “se vender” a uma empresa ou a um mercado (caso seja dona de sua própria empresa), objetificando-se, alheando-se, alienando-se por compulsão do espectro do desemprego e da dita Lei da Selva.

E, depois de tornar-se POSSE ou propriedade útil de outrem, ainda é submetida a um regime de trabalho que, ao contrário de ser a alegada “experiência curricular” incrementadora da especialização, seguindo uma natural vocação, tende, isto sim, a amortecer as características faculdades da pessoa, tornando-a um ser maquinal e artificial – ferramenta perfeita, do tipo que nunca reclama.

Na hipótese de esse estado de “homem-ferramenta” ser natural ou necessário, que possa, ao menos, ou trazer-nos uma justa COMPENSAÇÃO ao déficit criativo (justificando eticamente a remuneração do tipo salário) ou realizar-se plenamente como fator de criação, em sentido cultural (justificando eticamente a autorremuneração ou renda).

E ainda haverá a necessidade de isto tudo se realizar conscientemente pela pessoa, sem que sua própria dimensão filosófica (que todos possuem, em estado germinal) se deixe alienar ou vender ao imenso e monstruoso Leviatã do Lucro Não Eticamente Justificado, também denominado respeitosa e cientificamente Capitalismo.







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