sábado, 10 de março de 2018

Plâncton (1-6)






1 – Prelúdio


Descansávamos sob a árvore.
Nada tão simples
como um “antes nunca do que tarde”,
num mundo tão claro...
A vida através de um momento,
um clarão plácido, um entorpecimento
lindamente oportuno,
alvura / brandura sem igual.
Cantigas de sonho,
cantigas de feitiços,
ânimo recém assimilado,
nada tão suave quanto um verso cultuado.
Alguns dias...
Vidas.
       Descansamos sob a árvore.
Os pensamentos flutuam,
as folhas se roçam
ou caem com fragilidade na água límpida –
espelho de inocência.
Os pardais rumo ao horizonte –
o lápis repousa –
sua face é seda –
o cheiro do verão –
as cores descansam –
de vez em quando uma a se destacar.
Correm as crianças,
destruindo calculadoras eletrônicas,
cantando o ontem
em seu suave pular-cordas;
cantamos,
sorrio
e a brisa corresponde.
Flutua a não necessidade de promessas.
Dançam as nuvens.
Ao longe, o escuro matiz.
Ao longe, o fim da tarde.
Alguns dias...
       Vidas?
O forno rústico queima a empada;
a lagartixa resolve criar asas;
sempre há o que se esperar
quando o tempo é um ator;
cinco-quatro-três-dois-um:
       o lápis se quebra.


2 – Profecia


Eis o sol em primeiro plano,
no lugar escolhido à esmo
pelos ciganos, para festejar,
enquanto mustangs troteiam no campo
e a música muda de direção.
Igualmente o videoclipe,
entre névoas e mais névoas.
Grossa bruma, cegando o astro...
Não, não é o mundo das letras.
       Escalo.
       Mais e mais, tentando chegar,
tentando
       alcançar um lugar ao sol.
       no alto do monte rochoso,
       encontro o Pégaso de Ébano,
       doente das asas, a balbuciar:
“– Agora é sonho tão real,
mas já se foram os meteoros!
Onde estão? Os aguardo ansiosamente.
Não mero grão cadente,
mas soberba pedra reluzente!
       Escalei
              esta elevação
                     com grande esforço
                            de minhas pobres
                                   patas, e agora
nem ao menos escuto aqui
os trevos verdes a germinar.”
       E o equino ergue-se solenemente,
ainda que com dificuldade, e mira o mar:
“– Esqueçam as profecias!
Se porventura vierem a interpretá-las,
completamente nulo será o valor delas.”
Anda em direção ao ponto mais abrupto
(antes uma ave pousada
em seu negror não mais lustroso)
e de lá despenca,
cortando o ar como um falcão,
para afundar como um mergulhão.


3 – Espanto


(Volto ao meu recanto enganador.)
       Estranho os pássaros falarem tanto.
Suba na árvore;
ouça!
Não é aqui, é lá
– nas cercas brancas, empoleirados;
nas nuvens baixas, encolerizados;
nas sarças, firmes, acasalados
ou nas garras de algum predador.
Os galos perderam também a noção
da hora costumaz de berrar.
       Surge, além das colinas,
       a artilharia.
Rouquidão,
estridência;
       cucos tagarelando
       – sobre sua cabeça!,
       não em relógios de parede.
       Agora, aqui são muitos,
entre esfomeados jacarés do Mississipi
e dragões de Komodo
que nos perseguem!
Tantas bocas, tantos dentes,
caudas blindadas;
dotadas, porém, de toda flexibilidade
em fúria.
Então explodem barrancos,
borbulham as pedras à nossa volta,
enquanto dentro de nosso crânio
a música que nos foi imposta
acelera nossa adrenalina,
com boas e más consequências.
Gigantescos maxilares querem nos engolir;
criaturas de todos os tamanhos
e de igualmente variadas intenções.
Fujamos das bocas que se prendem
em nossos pés, agora escorregando,
sempre se amputando
e imediatamente se recompondo.
       Fujamos antes que o céu caia,
       antes que o silvo das serpentes
       abafe nosso grito
       – único modo
       de podermos nos comunicar.
       (Prometi que jamais gritaria com você
       – perdão!!!)


4 – Panorama


       Campo aberto.
As sombras dos arbustos
saem de seus lugares.
Massas de nuvens vivas,
vivas e tonitruantes,
cobrindo toda a extensão do céu
(não podemos fechar os olhos),
não param de rosnar,
entre os ventos que zumbem.
Os pinheiros,
no limite de nossa visão,
torcem-se antes de dispararem
como foguetes ao céu.
A terra treme
e não conseguimos correr,
como se estivéssemos momentaneamente enraizados,
em nosso choque perturbador.
       Luzes no céu!
Desçam e não provoquem suspense;
mostrem-se em impetuosa procissão,
pois também voaremos
– bem o podemos –
e então prepararemos o futuro final,
um supra-terreno futuro;
devaneios de efeito devastador!
       Defesa, ataque,
       fuga, confronto,
       amores nunca imaginados e...
Corte! Agora é hora de refúgio!
       Voemos no dorso de pteranodontes
para o inóspito oceano
onde estão as ilhotas
indicadas pelo ancião.
Rápido!
Antes da chuva de relâmpagos,
antes dos ventos,
às vezes medonhamente controlados,
às vezes terrivelmente cegos!


5 – Mar


As tropas estão chegando...
Mas não há tempo para admirar
a imponência das caravelas mecânicas
ou a surrealidade dos paraquedistas,
caindo para cima
sem a mínima suavidade.
Nossa lancha acelera cada vez mais,
desviando-se dos rochedos
e dos krakens ameaçadores,
passando através dos tubos das ondas
e dando incríveis cambalhotas,
e nem mais sei
o que é céu e o que é mar,
mas não estamos longe agora
e, por isso, prossigamos
olhando apenas para frente.
“– Amigos, não esqueçam jamais
de nosso objetivo:
esquecer qualquer objetivo
em detrimento
do incremento psicológico.”
       De repente,
       milhões de pardais marinhos
(e eu nem sabia que isso existia!)
       formam uma nuvem giratória,
ciclônica, levantando a água numa tromba
que serpenteia
para acima das nuvens
que se condensam mais e mais.
Explosões espetaculares,
de todas as proporções,
em todas as direções,
despertam todos as coisas enormes:
cetáceos, dinossauros, moluscos
e todos os seres mitológicos imagináveis;
alguns cuspindo e tragando água,
outros tragando e cuspindo fogo.
       Tiros ressoam de vários pontos
e são inevitáveis
o sangue, o suor e as lágrimas,
que se misturam na e à água
para desta forma impulsionar
as águas-vivas saltadoras
e constituir
novo e sagrado plâncton.


6 – Vermelho


Agora a chuva; a tempestade:
o quê mais?
É como se nunca houvesse existido
paz ou soluções fáceis para desatinos.
O medo e a adrenalina supersônica
parecem as únicas instituições confiáveis.
Deixemos as ondas nos levar
até a gruta coralínea, que logo nos abriga;
e lá, num único longo minuto,
revelo táticas e discuto planos;
aperto torniquetes e reponho membros;
e o salgado do antes doce mar se justifica,
pois foi o suco da vida,
drenado dos cortes das vítimas,
tanto dos agredidos quanto dos agressores,
que salgou toda sua imensidão.
“– Zelo por cada um de vocês,
mas de suas vidas vocês são os donos.”
       Súbito, de um submerso vulcão oceânico,
       irrompe uma enorme torre
       de inconfundível líquido vermelho
       – algo que não paralisa a ação,
       mas antes inflama ainda mais
       o frenesi apoteótico
       que intensifica sua dança de guerra
       em torno do agora gêiser probosciforme,
       que splatcheia
       com a máxima e desalentadora violência,
       erguendo o mar numa vaga também ciclônica,
       que aterroriza
       até os peixes mais masoquistas.
       A plataforma de pescadores,
       mesmo com sua maquinada locomoção,
       não escapa de ter corroída
       sua espantosa estrutura ambulante,
       com a erosão de um milênio
       em um minuto.




       (Continua)




Nenhum comentário:

Postar um comentário